Na feliz des-ocultação de FERNANDO JOSÉ FRANCISCO

O nome de Fernando José Francisco remete imediatamente, mutatis mutandis, para alguns sintagmas trágicos que serviram na história da literatura e das artes para se referir a alguns dos “filhos da lama” (Octávio Paz) como agora o de “suicidado da sociedade”, ou a alguns termos de não menor conotação trágica como o de “emigrados” que preferiu Cesariny para lembrar a fulgurante irrupção e desaparição (ou melhor, ocultação) de Fernando José Francisco na aventura da intervenção surrealista em Portugal: “Talvez de todos nós o pintor mais dotado e que pouco depois forneceria à pintura surrealista portuguesa o seu terceiro caso de “emigração”, esta total: para dentro, desaparecendo de todo o convívio, e ocultando para sempre, se é que os não destruiu, os seus óleos e desenhos” [1]. Felizmente, hoje sabemos, após o trabalho de (re) descobrimento e miraculosa ressurreição realizado por Carlos Cabral, que a maior parte daqueles óleos e desenhos – não muitos, a dizer verdade – conseguiram sobreviver ao silêncio do seu autor, embora alguns continuem perdidos ou ausentes e até um deles tenha aparecido em leilão com assinatura heterónima alheia à vontade do artista [2]. Artista de quem também pouco sabemos, para além da data do nascimento, e dalguns outros dados que cabem num simples cartão de visita: que foi aluno da Escola António Arroio; que foi um dos actores nas actividades do Café Herminius (1942-1943); que colaborou no suplemento “Arte” do jornal A Tarde do Porto, (1945); que participou na Exposição Geral de Artes Plásticas dos anos 1947, 1948 e 1949, bem como nas duas do grupo surrealista “dissidente” ou de Os Surrealistas (1949 e 1950), e, enfim, que encontrou a sua bela adormecida e sacrificou o amor antigo ao novo amor embora no seu sobreviver sem a pintura se servisse às vezes dela para não morrer de fome e que hoje sobrevivem (o seu amor e ele) em condições épicas.

Não só foi Cesariny quem manifestou publicamente o seu reconhecimento e apreço pela obra de Fernando José Francisco. De Cruzeiro Seixas ouvi pessoalmente muitas vezes a mesma opinião entusiasta (pela obra) e elegíaca (pelo súbito e prolongado silêncio e pela dificuldade no viver), opinião resumida nestas palavras do autor de Eu falo em chamas recolhidas por Eurico Gonçalves: “Na adolescência era certamente o mais sábio e o mais sensível de todos nós” [3].

Do trabalho de recuperação realizado por Carlos Cabral e que hoje se apresenta publicamente aos mortais podemos discriminar vários grupos de obras nascidas em momentos e circunstâncias diferentes: o grupo das pinturas e desenhos dos anos 30 e 40; as obras realizadas já “emigrado” como ilustrações de folhetos turísticos; um grupo menor de pinturas dos anos 2001 e 2002; alguma pintura realizada em 2006; e os “cadáveres esquisitos” realizados em 2006 de parceria com Cruzeiro Seixas e Mário Cesariny.

Quanto ao primeiro grupo, já a crítica tem destacado a sua evolução do realismo socialista para o surrealismo e da figuração para a abstracção, assinalando também o erotismo “agressivo” ou “violento” presente nalgumas das suas obras maiores. Assim, Luís de Moura Sobral resumia a trajectória de Fernando José Francisco nestes termos: “ Francisco accuse cependant dans sa peinture un mouvement d'accéleration presque unique, en ce sens qu'il semble passer d'une orientation réaliste-socialiste (1944-46) directement vers le vesant abstrait du surréalisme, frôlant l'informalisme. […] Les oeuvres que Francisco a envoyées aux expositions générales d'arts plastiques dénoncent des inégalités sociales (l'Église se trouve souvent mise en accusation dans ses dessins) dans un style qui provient des expressionistes allemands et qui rappelle Júlio. Dans le seul tableau que Francisco a envoyé à l'exposition surréaliste de 1949, la composition doit encore beaucoup au néo-réalisme: la rudesse des formes féminines évoque immédiatement les Mexicains et le brésilien Portinari. La scène est par ailleurs allégorique – une femme avec un réveil dans ses mans, un vieillard à la barbe blanche au fond (le Temps?) et une figure sans visage, habillée en noir (la Mort?) entre les deux. L'année suivante, à la deuuxième exposition du même groupe, Francisco montre à nouveau un seul tableau, L'armoire et Sena, où le virage est radical. La surface s'organise non plus en espaces euclidiens mais en textures et zones colorées habitées par quelques formes. Certaines de ces formes rappellent, par leur apparence génitale, les oeuvres de Vespeira ou peut-être de Matta. […] Une gouache exécutée vers le même période joue avec l'ambiguïté érotique entre figuration et abstraction.

En effet la surface est divisée au milieu et chaque partie est occupée par une forme circulaire. Mais ces formes ressemblent à des seins entre lesquels on croit apercevoir la bouche d'une femme et la base de son nez. Cette violence sadienne faite au corps féminin n'est pas sans rappeler la série des Viols de Magritte ou la Chair végétale de Vespeira. Aillleurs, Francisco en viendra à une construction plus solide par une accentuation géométrique des figures ” [4]. E Maria Jesús Ávila situava o autor “nas fronteiras da abstracção-figuração” para depois acrescentar: “Oscilando entre a mais pura abstracção ou configurando elementos de evocação figurativa, o artista elabora uma pintura de delicadas e finas camadas de cor que se sobrepõem, por vezes misturadas com vernizes, e sobre as quais vai configurando ou ocultando texturas, formas e linhas que flúem num espaço sensitivo e poético, somando-se assim a uma das buscas fundamentais do Surrealismo internacional de finais de 30 e 40. As formas sugerem elementos orgânicos, celulares ou biomórficos, por vezes próximos de Gorky, e tingidos de erotismo, não isento de certa agressividade. Esta pode ser subtil na redondez e maciez das formas circulares como seios, na obra Sem título, de 1947, ou violenta na força expansiva que estica a forma celular que aparece em O armário e o Sena, ou na tensão das linhas que o atravessam” [5]. E Eurico Gonçalves, por sua vez, destaca: ”A escassa obra de Fernando José Francisco aborda o Surrealismo enigmático e informal, tão inquietante quanto abstractamente” [6].

Do momento figurativo neo-realista ou social-realista podem ser bom exemplo as obras Sem Título da colecção Cruzeiro Seixas hoje na Fundação Cupertino de Miranda datada uma delas de 1943 e as outras sem data mas com certeza da mesma época, obras de pequeno formato em lápis de cor ou grafite sobre papel e representando uma cabeça de mulher ou cenas familiares com os fantasmas da dor, da doença e da fome nos rostos, temas que aparecem também e talvez duma maneira ainda mais expressiva nos três desenhos (mulher, grupo familiar, criança na cama com os estigmas visíveis da fome e do frio) de 1937 realizados pelo autor nas páginas dum exemplar dum livro de Casais Monteiro que pertence à biblioteca de Cruzeiro Seixas, exemplar encadernado e com uma pintura do próprio Cruzeiro Seixas na capa. [7]. Contudo, deve assinalar-se nessa época alguma “anomalia” ou desvio dos modelos temáticos exemplarmente simbólicos e da figuração próxima às vezes à deformação expressionista, como o desenho “O encantamento do rei”, datado de 1941.

Dos anos da intervenção surrealista, e para além de obras já referidas e muito conhecidas como o quadro “Sem Título” de 1947 ou O Armário e o Sena, podemos destacar, entre outros, a Praça Maior, sem data, título que, juntamente com alguns dos elementos temáticos do quadro, o próprio autor assinalava como referências directas a Espanha, e onde no espaço da praça evocadora dos vazios urbanos e solares de Chirico, aparecem figuras como a da mulher nua encostada à parede (prostituição, sexo na rua) ou uma figura mal definida avançando ligada a uma roda que tanto pode nos levar à mitologia clássica como ao mundo de tortura e de morte presente na iconografia hagiográfica medieval ou, enfim, a figura destacada na janela com a cabeça-sol/cabeça-luz/cabeça-chama, que depois voltará a aparecer noutro quadro da “ressurreição” de 2001-2002. Nesse primeiro momento da “ressurreição” regressam ao imaginário do autor elementos da etapa da intervenção surrealista, como as ondulações eróticas presentes no abstracto “Sem título” de 2002, ou a paisagem urbana da obra “Sem título” também de 2002 onde destaca entre outras figuras – a verde e magmática a brincar ou ascender ou a espreitar de cima do telhado, a azul apenas insinuada como grafitti na parede – a da mulher--árvore (com a sua carga de referências simbólicas) que ocupa o vão da porta, e onde, na janela, o que foi cabeça-em-chamas é agora já só candeia e chama. De 2001 é o óleo Sexo, na tradição figurativa do erotismo das cenas da “Mulher ao Espelho” ou da “Saída do Banho”, mas agora mulher sem-rosto de cabeleira-cérebro que assim provoca no espectador o efeito de dissonância que podemos encontrar em muita poesia de Rimbaud; e o mesmo efeito e com uma possível leitura moral acrescentada podemos ver no quadro “Ecce Homo”, em que a figura de Jesus é feminina ou andrógina e Jesus somos nós todos graças ao espelho que substitui o rosto na pintura.

Finalmente, e num segundo momento da já referida “ressurreição”, juntamente com algumas pinturas que às vezes fazem lembrar as águas cesarinyanas, deparamos com uma série de desenhos apresentados como “cadáveres esquisitos” realizados por Francisco José Francisco de parceria com Cruzeiro Seixas e Mário Cesariny, onde se recupera o velho jogo surrealista (e o que está por trás desse jogo e doutros jogos colectivos surrealistas: o automatismo e a força criadora do amor e da amizade) com resultados mais que de conjunção de justaposição e diálogo.

Ressuscitado ou renascido, Fernando José Francisco recobra aqui e agora o lugar que sempre mereceu na história do Surrealismo e da pintura portuguesa na boa companhia doutros argonautas – Cruzeiro Seixas, Cesariny – que como ele souberam da necessidade e do prazer de navegar inventando para isso novos mares e navios de espelhos sempre abertos aos ventos da liberdade, do conhecimento, da imaginação, do desejo, do amor, da poesia. Gaudeamus igitur.

Perfecto E. Cuadrado
Outubro de 2006

Colectivo Multimédia Perve
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| Fernando José Francisco [Texto Crítico]
 
 
 
Exposição "Cesariny, Cruzeiro Seixas, Fernando José Francisco e o passeio do cadáver esquisito"
 
 
Cesariny - Obra - Texto Crítico - Biografia
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Fernando José Francisco - Obra - Texto Crítico - Biografia
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Livro em serigrafia - Serigrafias - Joias
Fotografias da Inauguração - 02/11/2006
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