Cruzeiro Seixas
O Farol inextinguível do Surrealismo
Amor-Poesia-Liberdade

Ao longo de várias décadas de intensa actividade surrealista, como se o encontro consigo mesmo e com o mundo não se esgotasse nunca, o pessoalíssimo vocabulário figurativo de Cruzeiro Seixas aprofundou-se e enriqueceu-se no modo meticuloso como o domina na linguagem que inventa e reinventa, a todo o momento.

O artista não perdeu a capacidade de deslumbramento, ao iniciar-se, todos os dias, na aventura poética que assume como um ritual, que consiste em escrever e re-escrever, desenhar e redesenhar o mesmo poema, em várias versões.

E não serão a vida e a obra do pintor a demonstração plena dessa capacidade de deslumbramento, convertida em ritual?

O fascínio da juventude prevalece na memória dos mais velhos como um farol inextinguível, que ilumina o percurso da sua longa experiência vivida, cuja maturidade, concretizada em obra de arte, remete para a eternidade o que à eternidade pertence.

Cantar o amor é sonhar em voz alta.
Silenciá-lo é desfalecer ou morrer.
Mas é a voz do poeta que se faz ouvir para além de todos os obstáculos.
Nisso, os deuses invejam os génios que, decididamente, não receiam a morte, aceitam-na com naturalidade, quase se enamoram dela ou mantêm com ela relações de cumplicidade...
“ JÁ NÃO SOU EU QUE TENHO MEDO DA MORTE. É AO QUE PARECE A MORTE QUE TEM MEDO DE MIM” – Cruzeiro Seixas, “OS GÉNIOS SÃO IMORTAIS” – Dali.

O que, na juventude, estava demasiado próximo para ser verdade, agora é a distância do tempo que celebra a verdade dessa juvenil experiência única.

O que, para o autor, é a memória afectiva de factos vividos, para muitos de nós, que olhamos os seus desenhos, como se os víssemos pela primeira vez, com os olhos limpos de preconceitos, é a linguagem universal do desejo que nos emociona e nos transcende.

As suas figuras adquirem o carácter obsessivo de sonhos que se prolongam e se reflectem com subtis variações.
O poder metafórico da imagem poética aceita todas as interpretações e não se satisfaz com nenhuma.
Nos desenhos de Cruzeiro Seixas, a linha do horizonte, sendo longínqua e baixa, faz-nos sentir que olhamos tudo de um ponto de vista muito alto. Temos a sensação de pairar vertiginosamente. A infinitude espacial abrange o deserto, o mar e o céu.

À terra, água e ar, o pintor acrescenta o quarto elemento, o fogo, que simboliza a paixão ou o amor incendiário, tão persistente nos seus desenhos como nos seus poemas:

“EU FALO EM CHAMAS”
“FALO DA SOMBRA DE UM CAVALO-AQUEDUTO”
“FALO TAMBÉM DA BARCA NAUFRAGADA,
ABANANDO AS SUAS GRANDES ASAS COMO REMOS”
“TUDO ESTÁ PARA SER DEVORADO PELAS CHAMAS”
“LÁ ONDE O NEGRO SÉMEN DO MUNDO SE GERA NO MAIS PROFUNDO DOS VULCÕES”

É aí que tudo se transfigura.
Para Cruzeiro Seixas, os poemas que diz de-cór são as suas orações. A Poesia habita-o, tal como o Sonho, o Amor e a Liberdade.

A sua mensagem poética radicaliza-se na revolta que, através da audácia da imaginação, subverte a lógica para afirmar mais livre e plenamente a sensualidade de corpos alados, em paisagens do infinito.

“O CORPO É A PAISAGEM QUE A MOLDURA NÃO CONTÉM”
“O CORPO É COMO O CÉU, INFINITO”Os seus desenhos, como os seus poemas, são “ SONHOS A EMPURRAR OUTROS SONHOS PARA O ABISMO”.

A toada do discurso poético não diverge da que imprime nos seus desenhos. Em ambos os casos, sobressaem originais subtilezas, como as rimas gráficas e verbais na convergência de elementos díspares. Tal se deve à prática do cadavre-exquis verbal e gráfico, que explora o acaso e a livre associação de imagens.

Nos jogos de “perguntas e respostas”, todas as respostas são válidas para todas as perguntas e vice-versa. Assim nasce a Poesia. É o carácter imprevisível do confronto das ideias e das imagens que surpreende e estimula o pensamento divergente, ilógico e subjectivo, complementar do pensamento convergente, lógico e objectivo. Mais do que a tentativa de equilíbrio ou harmonia entre a razão e o instinto, o real e o imaginário, o objectivo e o subjectivo, a regra e a emoção, importa a FUSÃO DOS CONTRÁRIOS, preconizada pelo Surrealismo.

Os desenhos de Cruzeiro Seixas devem muito às suas colagens e vice-versa. Ambos jogam na disparidade dos elementos, deslocados do seu contexto habitual. Tal sucede, por exemplo, no excelente desenho-colagem--ocultação, intitulado “FALSAS APARIÇÕES A QUE ALUDE AFKA”, 1995.

O teatro que aqui se representa é a exaltação do desejo de corpos entrelaçados, associados a objectos, tendo como fundo, inevitavelmente, a noite.

“A NOITE LOUCA; A NOITE COM ÁRVORES NA BOCA” – Cesariny.
“A TRANSCENDÊNCIA VEM DA NOITE QUE JÁ NÃO HÁ POIS É TUDO DIA ESCURO” - Cruzeiro Seixas.

Nos seus desenhos e colagens, quantos pássaros iluminados emergem da noite obscura!?
Quanta luz redentora emerge da treva!?!!...
Cruzeiro Seixas mergulha fundo na noite mágica do desejo incandescente que, impetuoso, eleva o eros acima da realidade.
Nada o impede de pairar e de voar, mesmo sem asas...

No “Harém”, por detrás do muro, na ânsia de amar, quantos braços se erguem na direcção da lua?!...

A espiral é o movimento contínuo que percorre o corpo do cavalo e do cavaleiro; é o búzio, o corno retorcido, a flor e o ornato. A espiral surge na curva da asa, no alongamento do pescoço, na ondulação dos cabelos, nas nuvens, no mar, na viagem sem regresso...

Tal como uma jóia rara de obsessivo ritmo curvilíneo, múltiplas espirais preenchem o ornato barroco de fantasia infinita. Nesse labirinto de viagens imaginárias se desvendam rostos simétricos de “FIDALGOS NAVEGADORES”, 1948.

Prontos para partir em embarcações improvisadas, seres alados com corpo humano e cabeça de pássaro lêem o “TELEGRAMA” da última hora.

OBJECTOS SURREALISTAS

Os objectos surrealistas de Cruzeiro Seixas são únicos e irrepetíveis, de uma singularidade absoluta, que fascinam pela sua presença mágica, pela sua irreverência dádá e pela sua “estranheza inquietante”, na verdadeira acepção freudiana.

Um pão cortado ao meio e dois olhos de vidro são dois pássaros juntos, contemplando a lua azul na noite negra, em “O PÁSSARO PI E LOPLOV EM HOMENAGEM A MAX ERNST E GRANELL”.

Pedras roliças ou seixos com buracos, que são boquinhas abertas de meninos do coro, em “ORFEÃO DA MINHA ESCOLA”.

Emoldurado, o “BILHETE DE METROPOLITANO QUE PERTENCEU A FERNANDO PESSOA” é um exemplo de sacralização do efémero; atitude dádá que Cruzeiro Seixas assume, ao elevar à categoria de obra de arte uma lata de conservas de carapaus lusíadas, com o título “OBJECTO TRÁGICO-MARÍTIMO”.

Um osso esburacado adquire a configuração de nu feminino, em “VITÓRIA DE SAMOTRÁCIA”.
A propósito, Cruzeiro Seixas escreve:

“A ARTE DEU-NOS A GIOCONDA, A VITÓRIA DE SAMOTRÁCIA, O GRECO OU OS IMPRESSIONISTAS...MAS A OBRA PRIMA, A COISA MAIS BELA DO MUNDO DESDE QUE O MUNDO É MUNDO DEVE SER AMAR E SER AMADO, O AMOR E A ARTE SUBLIME DE NOS METAMORFOSEARMOS”.

“L'Opresseur” – Retrato de Salazar, 1950 – objecto surrealista com torneira que não verte, esfera negra dilatada ou bexiga cheia, e o penacho da política de fachada do Estado Novo, cuja imagem surge, à escala gigantesca, numa fotomontagem onde figura o Retrato de Cruzeiro Seixas ao volante de um descapotável, em 1974. “ OS MEUS DOIS AUTOMÓVEIS”, título desta fotomontagem de dois retratos, correspondentes a duas épocas opostas: uma mais antiga e sinistra, a de repressão; e outra mais recente e esperançosa, a de liberdade, antes e depois do 25 de Abril.


OBJECTOS SURREALISTAS

Os objectos surrealistas de Cruzeiro Seixas são únicos e irrepetíveis, de uma singularidade absoluta, que fascinam pela sua presença mágica, pela sua irreverência dádá e pela sua “estranheza inquietante”, na verdadeira acepção freudiana.

Um pão cortado ao meio e dois olhos de vidro são dois pássaros juntos, contemplando a lua azul na noite negra, em “O PÁSSARO PI E LOPLOV EM HOMENAGEM A MAX ERNST E GRANELL”.

Pedras roliças ou seixos com buracos, que são boquinhas abertas de meninos do coro, em “ORFEÃO DA MINHA ESCOLA”.

Emoldurado, o “BILHETE DE METROPOLITANO QUE PERTENCEU A FERNANDO PESSOA” é um exemplo de sacralização do efémero; atitude dádá que Cruzeiro Seixas assume, ao elevar à categoria de obra de arte uma lata de conservas de carapaus lusíadas, com o título “OBJECTO TRÁGICO-MARÍTIMO”.

Um osso esburacado adquire a configuração de nu feminino, em “VITÓRIA DE SAMOTRÁCIA”.
A propósito, Cruzeiro Seixas escreve:

“A ARTE DEU-NOS A GIOCONDA, A VITÓRIA DE SAMOTRÁCIA, O GRECO OU OS IMPRESSIONISTAS...MAS A OBRA PRIMA, A COISA MAIS BELA DO MUNDO DESDE QUE O MUNDO É MUNDO DEVE SER AMAR E SER AMADO, O AMOR E A ARTE SUBLIME DE NOS METAMORFOSEARMOS”.

“L'Opresseur” – Retrato de Salazar, 1950 – objecto surrealista com torneira que não verte, esfera negra dilatada ou bexiga cheia, e o penacho da política de fachada do Estado Novo, cuja imagem surge, à escala gigantesca, numa fotomontagem onde figura o Retrato de Cruzeiro Seixas ao volante de um descapotável, em 1974. “ OS MEUS DOIS AUTOMÓVEIS”, título desta fotomontagem de dois retratos, correspondentes a duas épocas opostas: uma mais antiga e sinistra, a de repressão; e outra mais recente e esperançosa, a de liberdade, antes e depois do 25 de Abril.

ENCONTRO COM ÁFRICA, ARTE PRIMITIVA E ARTE BRUTA

A intervenção pictórica em “ESTEIRA AFRICANA”, 1953, reporta-se ao encontro de Cruzeiro Seixas com África, “um amor inteiramente correspondido”, segundo as suas próprias palavras.

Precisamente nesta data, em 1953, Mário Cesariny declarou: “ÁFRICA É O ÚLTIMO CONTINENTE SURREALISTA, TUDO O QUE ANTECEDE, COMBATE OU ULTRAPASSA A INTERPRETAÇÃO ESTREITAMENTE RACIONALISTA DO HOMEM E DOS SEUS MODOS TEM A VER COM UM SENTIDO SURREALISTA DA VIDA. ÁFRICA GOZA DO PRIVILÉGIO RARO DE NÃO TER PRODUZIDO NEM O CARTESIANISMO NEM NENHUM DOS SISTEMAS DE PENSAMENTO E ACÇÃO BASEADOS EM UNIVERSOS DE CATEGORIAS. ÁFRICA CONHECE UM MITO QUE NÓS IGNORAMOS. JULGAMO-LA ADORMECIDA NO PASSADO E ESTÁ TALVEZ PERFAZENDO O FUTURO”

Além da Arte Primitiva, que tanto o fascina, Cruzeiro Seixas é um descobridor de “Naifs” da chamada Arte Bruta, praticada pelo homem comum, pela criança antes de ser escolarizada e pelo louco, à margem do sistema cultural instituído.

“UMA DAS MAIORES DESCOBERTAS DO SÉC.XX É PARA MIM SABER ENFIM OLHAR O DESENHO DE UMA CRIANÇA, O ENCONTRO COM A ARTE DOS POVOS DITOS PRIMITIVOS E, POR EXEMPLO, AS EXPERIÊNCIAS (VIA MESCALINA) DE UM HENRI MICHAUX, ISTO SEM ESQUECER MIRÒ OU A JANELA POR ONDE ESPREITAM OS PINTORES DE DOMINGO”. – diz Cruzeiro Seixas que, a propósito de loucos, marginais e delinquentes, acrescenta:

“O SOL É FEITO DE DELINQUENTES DE DELITO COMUM, DE GENTES QUE NÃO VÊM BIOGRAFADAS EM PARTE ALGUMA E NUNCA VESTIRÃO RIDÍCULOS FATOS DE BRONZE, NA PRAÇA PÚBLICA”.

O ACASO

Sobre as colagens abstractas, faceta inédita da sua obra, o pintor teve oportunidade de dizer o que pensa: “ OCORRE-ME QUE A TODOS, ELAS PARECERÃO NÃO TER MUITO A VER COM AQUILO QUE GERALMENTE EXPONHO. SEI NO ENTANTO QUE ME SÃO NECESSÁRIAS (...). JULGO QUE TÊM UM SENTIDO QUASE SECRETO. OU SÃO UMA ESPÉCIE DE ESQUELETO DO MEU TRABALHO MAIS CONHECIDO. MAS DEFINIR NÃO É O MEU FORTE – É TALVEZ O INDEFINIDO O QUE ME DEFINE. ESTAS COLAGENS ACONTECERAM, E É TUDO”.

A abstracção só tem sentido para quem acredita nela. Apesar das reticências, ao ponto de raramente a exibir como coisa válida, Cruzeiro Seixas fica surpreendido com o encontro ocasional de duas ou mais formas geométricas, recortadas em cartolinas de cor, que contrastam entre si como elementos de composições cromáticas, motivadas pelo acaso de possíveis acasalamentos de formas poligonais de cores lisas, vermelhas, negras, verdes, azuis e laranjas. Como experiência à margem do seu “trabalho mais conhecido”, estas colagens abstractas fazem-nos pensar na atitude dádá de Arp, que explora a lei do acaso na abstração com a mesma convicção interior com que Cruzeiro Seixas a explora na figuração.

Para o pintor, abrir um livro ao acaso e extrair daí um verso ou um título para uma obra sua é tão importante como viajar ao acaso, sem destino, ao sabor da imaginação, seduzido pelo desconhecido.

“O ACASO É O MEU DEUS!” – diz Cruzeiro Seixas. E tem razão porque toda a sua obra é feita de “acasos objectivados”.

Segundo a lei do acaso, os CADÁVRES-EXQUIS de Cruzeiro Seixas, Fernando José Francisco e Cesariny proporcionam a conjugação inesperada de três modos divergentes num só desenho colectivo.

“ A POESIA DEVE SER FEITA POR TODOS, NÃO APENAS POR UM” - Lautréamont

Eurico Gonçalves
Outubro 2006

Colectivo Multimédia Perve
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| Cruzeiro Seixas [Texto Crítico]
 
 
 
Exposição "Cesariny, Cruzeiro Seixas, Fernando José Francisco e o passeio do cadáver esquisito"
 
 
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