| Breves
considerações acerca do tema Primitivismos-Contemporâneos
A propósito de interrogações levantadas pelo Comissário da exposição Parece que ainda não se acertou na designação a dar à arte do continente africano. Começa a reconhecer-se que ela é tão ARTE como a “arte francesa” a “arte italiana”, a “arte espanhola”, etc., etc., mas admitamos que as definições são na sua grande maioria imprecisas… Sabe-se da descoberta desta arte por Braque, Picasso ou Derain em 1900. E sabe-se da preferência dada à arte da Oceânia por André Breton – em duas palavras, por lhe parecer mais imaginativa. Também por esse tempo de tão ricas descobertas, a arte dos índios Hopi com as suas Kachinas, apaixonou gentes de superior sensibilidade. Portugal que tanto navegou através do mundo, só em 1975 teve enfim o seu Museu Nacional de Etnologia; no entanto, pelo menos o escultor Diogo de Macedo, nos anos 20, já possuía algumas peças de África. E um irmão de Teixeira de Pascoaes, caçador de elefantes, tinha guardado algumas belas esculturas no solar de Amarante. De admirar me parece que estas obras ainda hoje sejam vistas como etnologia, quando deveriam ter lugar no Museu das Janelas Verdes, junto a Nuno Gonçalves ou Jheronimus Bosch. Ou poderiam/deveriam povoar a Torre de Belém acompanhando o Rinoceronte que figura num dos ângulos da Torre. Parece-me evidente, que sempre se trata da mesma carga estética e humana. O que se procura tocar é o lado fugidio da alma do homem! E é derrubando fronteiras que vamos construindo a liberdade. É certo que (como os animais), estamos condenados a viver em sociedade; a sabedoria está em conseguir conquistar em cada minuto do dia a dia a liberdade interior, que é a única liberdade livre. Só pela inteligência somos livres, e talvez por isso, desde os anos 40, o surrealismo é a minha política. Foi assim que o inconsciente e o subconsciente, me conduziram a África. Se lemos Levy-Strauss, ou nos tão distantes anos 20 deparamos com a referência na revista “Revoluction Surrealiste” às Kachinas, verificamos com desespero quanto temos recuado. Lembro Durer, em 1520, posto perante obras vindas das grandes civilizações que se localizaram no México: "J’ai vu les choses qu’on a rapportees du noveau pays de l’or; toutes sortes d’objects étonnants á divers usages, bien plus beaux que tout ce qu’on n'ait déjà vu. De ma vie je n’ai rien vu qui m’ait fait autant de plaisir. Ce sont des objects d’art étonnants, et j’ai étè frappe du genie étrange des hommes de ces pays”. Da viagem de André Breton “Chez les Hopi”, na selecção das suas notas, que fez José Pierre, retiro estas linhas: "Refus complet de coopération avec amérique à la guerre; 30 jeunes gens emprisonnés pour refus de service militaire; on les relâche aprés quelques mois d’incarcération, dans l’espoir qu’ils se soumettent, mais ils restent inébranlables; on les enprisonne de nouveau et cela dure depuis 4 ans..." E transcrevo da “Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira”: “Pouco tempo após a tomada de Cambambe, (1604), principiaram os angolas a atacar os portugueses, e a sua atitude de rebeldia foi-se sucessivamente transformando no propósito de nos expulsar. (…) Em 1611, quando assumiu o Governo-Geral de Angola, Bento Banha Cardoso, estava à frente dos angolas insubmissos um soba de grandes qualidades guerreiras chamado Quiluangi. A campanha para o aniquilar durou até 1615”. Parecerá que não respondo ao Carlos Cabral Nunes? É que não sei separar; o meu desejo é unir, ou pelo menos aproximar. Acredito que TUDO põe em causa o próprio sistema universal, pois são inúmeras as correspondências de TUDO com TUDO. O que quero referir é o espírito das coisas invisíveis, que tanto afinal se afirmam. África? Europa? Oceânia? E outras e outras civilizações? Como falar de arte sem falar do homem? No meio de tudo isto, que importância tem a minha obra? Tenho dito e redito que amo muito mais a obra dos outros do que a minha. Nos anos que passei em Angola procurei permanecer o menos possível em Luanda, apesar do seu encanto. Era o “interior” que me atraía e inevitavelmente dessas longuíssimas e difíceis viagens, resultou também uma “colecção” sem consciência de coleccionador, para o que me faltava dinheiro e saber. Tratava-se de “viagens comerciais” e era no pouco tempo livre dessas tristes funções que entrava em apaixonado contacto com o que ainda restava daquela admirável civilização. Infelizmente quando do 25 de Abril, para subsistir, tive que vender essas obras. O que aprendi com elas? O que aprendi a quilómetros e quilómetros da “civilização”, em batuques que assombravam o próprio luar? E o que aprendi quando trabalhando numa barragem ouvia o leão que vinha assaltar a capoeira? Sou eu um primitivo? De facto, a mensagem do Douanier Rousseau ou a do Facteur Cheval tocam-me profundamente. Julgo que é a ausência desse “primitivismo”, que falta dramaticamente na sociedade contemporânea. Volto àquilo que fiz, pois não saberia pôr aqui TUDO O QUE NÃO FIZ e quereria ter feito. Permaneci em África de 1950 a 1964, de onde fui expulso precipitadamente quando me quiseram DAR um metralhadora, e incluir-me em milícias. Ali desenhei, pintei, fiz “Objectos”, escrevi poesia e expus, sempre como amador, pois nunca me senti impelido para o profissionalismo, que é a chave deste assustador momento que o mundo atravessa. Amei intensamente África, tanto as gentes como a sua arte riquíssima até nos pequenos artefactos de uso diário como os tachos de barro, as cabaças ou as esteiras, que são obras de arte únicas. Trata-se de caminhos que vão muito mais longe do que me é possível, a mim: são caminhos onde podemos encontrar Grunewalde, Goya, Picasso, Cezanne ou Lam, e eu só faço aquilo que sei – ou seja aquilo que não sei. Não sei se algo de África estará nalgum dos inúmeros desenhos que fiz, e logo perdi. Lembro que quando, regressado de África, as pessoas que em minha casa viam essas peças mostravam-se indiferentes, ou não se coibiam de censurar o meu mau gosto. Hoje já há, espalhados pela cidade um certo número de estabelecimentos comerciais mostrando “arte negra”, que certamente tem o seu público! África sofreu brutais contactos com a Europa através dos séculos – afinal como nós hoje que trocamos a alma por frigoríficos, automóveis, computadores e as mais diversas maquinetas! A África foi obrigada a trocar a alma por pequenos espelhos, canivetes e inutilidades, que lhes eram oferecidas por missionários e comerciantes... Lisboa,
Janeiro de 2005 |