Cesariny, o Grande (Desconstrutor) Se quisermos pensar em Mário Cesariny de Vasconcelos devemos figurar alguém que desconstrói, que baralha os dados, que nos deixa sem chão. Começou por si mesmo (como cabe aos heróis) e, num ritual exemplo de desmontagem do mundo, acabou dispensando o apelido paterno — trata-se de um sacrifício de amputação-libertação, como que uma cerimónia arcaica que o deixou livre para fazer aquilo que não era esperado que fizesse: ser poeta e amar, vaguear pelas cidades e gritar, olhar as linhas de águas do mar e pintar, pegar em objectos perdidos e dar-lhes um novo sentido.São abundantes os exemplos visuais desta exposição que provam sem demora esta realidade. Embora a colecção da galeria possua obras dos tempos iniciais (anos 40 e 50) a cedência de algumas delas para a exposição que presentemente se realiza em Madrid (Circulo de Bellas-Artes/produção Fundação EDP) deixa--nos aqui, quase só, com obras recentes. Dessas obras dos primeiros anos de actividade pode logo dizer-se que são obras finais — porque a juventude só o é como longo caminho de respiração. Das obras mais recentes, muitas surgem enfeitadas de um alo de leveza e jovialidade. Ambos os tempos transportam o segredo da maturidade, que não é alguma coisa que se alcance com esforço mas um sinal que nasce com alguns. A maturidade não é séria nem alegre, não é densa nem solta, pode viver em todas as dimensões de um trabalho humano, mas vive em muito poucos humanos — é a marca da sabedoria e da alegria. Cesariny tem de tudo no seu corpo artístico: jocoso e épico, lírico e contestatário — poemas feitos de palavras simples e “assemblages” extremamente complexas, pinturas de uma só cor e linha e aquamotos onde tinta e água estabelecem redes de inextrincáveis texturas, colagens de subtis truques visuais e linguísticos e pinturas onde os símbolos se oferecem a uma leitura iniciática. Cesariny apresenta uma obra que se faz dos rostos e corpos que se viram e que se imaginaram, que se perderam e que se quiseram. O desejado, como imagem ideal do amado (cavaleiro ou vilão, rei ou marujo); e do amigo que a passagem dos anos matou — como matou a cidade, os seus cafés, a sua poesia, os seus eléctricos… São iconografias pessoais construídas, entre textos e imagens, em redor de heróis e anti-heróis, desejados e rejeitados e de novo desejados e rejeitados. O mais notável ícone, de significativo peso histórico, é a pequena escultura pintada de um “Fernando Pessoa Ocultista” (veremos que também poderia ser um “memento mori”), poeta que Cesariny se encarregou de des-mitificar (simplificar) para melhor o poder entender (louvar) — não na sua dimensão racionalista mas ocultista. O modo como dois corpos (de facto, um, é apenas um meio-corpo: pernas e cintura) se interpenetram e terminam em sugestão ascensional (glosando o tema da coluna-infinita) e o modo como o caderno de desenhos que lhe surge associado vai esclarecendo o evoluir do pensamento-imaginação visual do autor, inicia-nos numa experiência plástica e intelectual notável. No extremo oposto temos a forma-informe de um “Viriato”: o barro atirado e a madeira encontrada ajudam-nos a imaginar a figura onde nada existe e remete-nos para as experiências mais radicais do autor — o momento em que, nos anos de 1946/7 a 1950/52, realizou alguns dos mais importantes exemplos de heterodoxia surrealista no conjunto das artes visuais internacionais. Entre o formalismo estilizado proporcionado pela concretização de uma ideia (Fernando Pessoa) e a exploração do “informel” (exemplificada por “Viriato”) temos o arcaísmo das suas composições centralizadas, onde o rosto é enquadrado numa vinheta, onde as figuras criam simetrias só desequilibradas pelas matérias, cores e temas: colagens e pinturas sobre cartão que podem ser trágicos cristos espanhóis ou delicadas variações da “Menina Poesia”, uma alegoria de purificação que se descobre logo em desenhos muito antigos (anos 50) e sobrevive e se desmultiplica até agora.De Cesariny apresentam-se obras em que enfrenta a morte com a displicência de quem ama a vida e o temor também de quem ama a vida. E o seu atelier imaginário enche-se de portas “para uma realidade paralela”, de lições de sabedoria última onde não pode faltar nem uma “arte de morrer” nem um “memento mori”. São coisas feitas de pedaços de vidas esquecidas, encontradas e desencontradas, de amigos que se esquecem dos sapatos (Francisco Aranda), de recortes de necrologias e primitivos instrumentos de música erguidos em elementos de brasão. Também uma “memória para José Escada” se pode entender como monumento póstumo e, ao mesmo tempo, esclarecer-nos acerca da tarefa de acaso e minúcia que é para Cesariny apanhar o lixo urbano (por exemplo, embalagens de fruta e de electrodomésticos) para deles retirar (ou neles colocar?) todos os sentidos de um pensamento interessado em falar da vida e de si mesmo através da morte e dos outros. De Cesariny apresentam-se obras de peças roubadas em “altares”. São altares sacrílegos devidos, não a qualquer vocação religiosa mas a uma inevitável vocação de mistério e transcendência que faz admitir à mesa da ceia o falhado “assassino do papa” (Padre Khron) ou os inocentes “pastorinhos”, que concebe um pequeno altar azul sem imagens (apenas como estrutura arquitectónica) ou, numa associação escultórica (quase, também, uma escultura tumular), uma “Homenagem a Bocage que protestou pela morte de Maria Antonieta, raínha de França” — aqui, o título transforma em trágico o que poderia parecer uma brincadeira (assemblage de um casco de tartaruga, recuperado de forma kitsch, com uma cabeça de boneca). Ou, finalmente, concebe o que podemos configurar como tesouro roubado, relíquia de um santo ou sinais de um pecador: o anel e o alfinete que, na juventude, Cesariny desenhou e realizou na oficina de ourives de seu pai e que, na idade adulta, rejeitada a profissão que a tradição familiar lhe oferecia como herança segura, montou num suporte icónico: homenagem à negação de um futuro que não quis. De Cesariny apresentam-se obras onde visualidade e poesia, imagem e palavra, não se separam nem se distinguem criando naquilo a que uma obra pode dar título: “uma combinação perfeita”. Este aproveitamento de uma prova tipográfica rejeitada (só com passagem de azul) sugere um poema visual com a simplificação quase oriental de todos os seus poemas visuais (iniciados em 1947 em Paris sob influência de Victor Brauner). Podemos seguir outros exemplos próximos (com colagens) em “first signs of fear” ou “limpam veneza” ou “homens sexuais”. Ou completá-los com outros cujo sentido caligráfico é dominante (“primeira lição” e “3,1416”) e estabelece uma rede de linhas ornamentais onde a displicência se torna sofisticação. Dois casos particulares nos podem deter: um estudo para azulejos em homenagem a John Lenon, onde os textos originais se inscrevem em caracteres tipográficos (máquina de escrever) e de modo livre mas controlado na grelha dos azulejos; e um poema-visual “memento mori” e altar (tudo ao mesmo tempo), dedicado a António Maria Lisboa, herói também (pessoal e de uma geração inteira de surrealistas), onde o precocemente desaparecido poeta se proclama “a terceira meia-noite dos dias que começam”. De Cesariny apresentam-se obras onde o desejo de entendimento do que se oculta nos “dias que começam” se entende como desejo de figurar visões de futuro como visões do destino nacional. Aqui se enquadra a ideia (entendida como paixão e como desmistificação da paixão) sebastiânica de uma colagem (repetindo uma outra, de 1969, onde um longo texto inserido no verso nos explica o destino português) espelhando a fachada neo-manuelina do Museu de Marinha, em Lisboa, assim transformado em “Astronave portuguesa” capaz de concorrer (num passado que é futuro) com a nave americana que acabara de pousar na superfície lunar. O que a História havia de provar (a originalidade e precocidade da sua obra plástica, e plástica-verbal, no contexto nacional e internacional), julgo estar já definitivamente alcançado. De Cesariny apresentam-se aqui obras que nos iniciam numa intensa arte de viver ou numa intensa recordação da vida, que nos libertam de todos os sinais do medo e nos limpam, corpo e alma, para as noites que começam. Desconstruir é a sua maneira própria de construir. Percebemos assim, que qualquer pequena amostra do seu trabalho é sempre uma primeira lição de infinito, uma porta de entrada num mundo paralelo onde a liberdade é o único bem e único dever — única autoridade, diria ele. |
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| | Cesariny [Texto Crítico] | |||||||||||||||||||||||
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